segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Testamento e Última Vontade de João Calvino

Testamento e Última Vontade de João Calvino

Publicado em 20 de outubro de 2010 – 8:25
por João Calvino
Em nome de Deus. A todos seja notório e manifesto, como assim seja que no ano mil quinhentos e sessenta e quatro, no vigésimo-quinto dia do mês de abril, eu, Pierre [Pedro] Chenalat, cidadão e notário juramentado de Genebra, fui chamado para atendimento a João Calvino, ministro da Palavra de Deus na Igreja de Genebra e cidadão da dita Genebra, achando-se ele enfermo e indisposto no corpo tão somente. Declarou-me ele querer fazer seu testamento e declaração de sua última vontade, solicitando-me escrever segundo o que seria por ele dito e pronunciado, o que, a seu expresso pedido, eu o fiz, e escrevi sob sua direção, conforme ele me ditou e pronunciou, palavra a palavra, sem nada omitir ou acrescentar, na forma que se segue.
Em nome de Deus. Eu, João Calvino, ministro da Palavra de Deus na Igreja de Genebra, sentindo-me a tal ponto acometido de diversas enfermidades que não posso de outra maneira pensar senão que Deus quer-me retirar em breve deste mundo, hei achado de bom alvitre fazer e lavrar por escrito meu testamento e declaração de minha última vontade, na forma que se segue. Em primeiro lugar, que rendo graças a Deus por isso que não somente teve piedade de mim, pobre criatura Sua, em retirar-me do abismo da idolatria em que eu estava mergulhado, para lançar-me ao fulgor de Seu Evangelho e fazer-me participante da doutrina da salvação, de que sou demais de indigno, e em que, estendendo Sua misericórdia, me susteve em tantas imperfeições e deficiências, que bem mereciam que eu fosse cem mil vezes dEle rejeitado. Mas, o que é mais, Ele estendeu para comigo Seu favor, até o ponto de servir-Se de mim e de meu labor para levar e anunciar a verdade de Seu Evangelho, protestando desejar viver e morrer nesta fé, que Ele me há dado, não tendo outra esperança nem refúgio senão em Sua adoção graciosa, na qual está embasada toda minha salvação.
Abraçando a graça que Ele me conferiu em nosso Senhor Jesus Cristo e aceitando o mérito de Sua morte e paixão, a fim de que por este meio todos os meus pecados sejam sepultados, e rogando-O a de tal maneira lavar e limpar-me com o sangue deste grande Redentor, que foi derramado por todos os pobres pecadores, que possa eu comparecer ante Sua face como tendo Sua imagem. Protesto também que me hei esforçado, segundo a medida da graça que Ele me conferiu, por ensinar Sua Palavra, em toda pureza, seja em sermões, seja em escritos, por expor fielmente a Escritura Santa. De igual modo, em todas as disputas que hei travado contra os inimigos da verdade jamais usei de dolo nem sofismática, ao contrário, procedi sempre com toda lisura para manter-Lhe a causa. Mas, pobre de mim, o meu querer e o zelo que tenho, se assim se pode chamar, têm sido tão glaciais e tão lassos que me sinto em débito em tudo e por tudo. E não fora Sua infinita bondade, toda a afeição que tenho tido não seria senão fumaça; mais até, as mercês que Ele me há conferido render-me-iam ainda mais merecedor de condenação. Meu refúgio, portanto, é Aquele que, sendo Pai de Misericórdia, seja e Se mostre Pai de um mísero pecador. Quanto ao mais, quero que meu corpo, após minha morte, seja sepultado no modo costumeiro, aguardando o dia da bem aventurada ressurreição.
No que tange aos poucos bens que Deus me deu aqui para deles dispor, nomeio e constituo meu herdeiro único a meu mui amado irmão Antoine Calvin [Antonio Calvino], todavia, honorário tão somente, deixando-lhe, com todo direito, a “couppe” que tive do senhor de Varannes, rogando contentar-se, como já o tomo por certo, pois que sabe ele que não por outra razão o faço que para que o pouco que deixo reverta a seus filhos. Ademais, lego ao Colégio dez escudos e à Bolsa dos Pobres outro tanto. De igual modo, a Janne, filha de Charles [Carlos] Costan e de minha meio-irmã, do lado paterno, a soma de dez escudos. Então, a Samuel e Jean [João], filhos de meu referido irmão, meus sobrinhos, cada um quarenta escudos. E a minhas sobrinhas, Anne, Susanne e Dorothée, cada uma trinta escudos. Quanto a meu sobrinho David, seu irmão, por isso que ele tem sido leviano e volúvel, não lhe dou senão vinte e cinco escudos, como castigo.
Em suma, isso é tudo de bens que Deus me deu, segundo o que hei podido avaliar e estimar, tanto em livros quanto em móveis, baixela, e tudo o que reste. Entretanto, se mais se apurar, que se distribua entre meus citados sobrinhos e sobrinhas, não excluindo David, se Deus lhe faz a graça de ser mais moderado e assisado. Quanto a este artigo, creio que não haverá nenhuma dificuldade, sobretudo, quando minhas dívidas houverem sido pagas, como já determinei a meu irmão, a cujo cuidado tudo entrego, nomeando-o executor do presente testamento, com a assistência de Laurent de Normandia, dando-lhes todo poder e autoridade de fazer inventário, sem norma de justiça, e de vender meus móveis para com isso apurar e obter dinheiro, com vistas a cumprir o disposto tal como aqui se contém. Neste vigésimo quinto de abril, mil e quinhentos e sessenta e quatro. Assim é João Calvino.
Depois de o haver escrito como acima se contém, no mesmo instante o dito expectante Calvino sublinhou com sua assinatura costumeira a própria minuta do referido testamento. E, no dia seguinte, que foi o vigésimo-sexto dia do mês de abril, mil quinhentos e sessenta e quatro, o expectante Calvino me fez de novo chamar, presentes como testemunhantes Theodore de Beza, Raymond Chauvet, Michel Cop, Louis Enoch, Nicolas Colladon, Jacques de Bordes, ministro da Palavra de Deus nesta igreja e, assim, Henri Scringer, professor de artes, todos cidadãos de Genebra, na presença de quem declarou ele haver-me feito escrever, a seu nuto e ditado, o testamento supra, na forma e nos termos que acima se registram, solicitando-me fazê-lo ouvir em sua presença e das citadas testemunhas a isto requeridas e exigidas, o que fiz, em voz alta, palavra por palavra. Após essa leitura, reiterou ele que tal era sua vontade e disposição última, desejando seja ela observada. Ele, em maior aprovação disso, pediu e requereu que os supra-referidos o subscrevessem comigo. Isto assim se fez. No ano e dia retro referidos, em Genebra, na chamada Rue des Chanoines [Rua dos Cônegos] e residência do mesmo. Em testemunho de que e para servir de prova tanto quanto de razão, pus em forma, como acima, o presente testamento, para expedi-lo a quem de direito, sob o selo comum de nossos mui honoráveis Senhores e Superiores e meu sinete manual costumeiro. Assim assinado: P. CHENALAT.
Tradução: Waldyr Carvalho Luz
Fonte: A Vida e Morte de João Calvino, de Theodoro de Beza. Luz para o Caminho, págs. 87-91.

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